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Espiritualidade - Moisés Elias Jeremias

Publicada em 20/06/20 às 12:50h - 788 visualizações

por Dom José Roberto Fortes Palau


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 (Foto: rembrandt (pinterest))
SINAI: TEMPO DA MATURIDADE

Segundo a Sagrada Escritura, ao terceiro mês da saída do Egito, Israel chega ao deserto do Sinai, onde acampa diante da montanha (cf. Ex 19, 1-2). E ali permanece por um longo tempo. Foi um tempo decisivo para sua história religiosa. Diante do monte Sinai, Israel tornou-se o “povo de IAHWEH”. 

No monte Sinai, Deus entregou toda a legislação ética e cultual de Israel, quantitativamente um terço de todo o Pentateuco e qualitativamente o seu coração. Daí a denominação “Torah” (Lei) dada a todo o Pentateuco. No Sinai, Israel recebeu a “Lei” que o tornou “Povo de Deus” e que, por sua vez, exigia um comportamento adequado a essa nova realidade existencial. Comportamento que exigia grande maturidade moral. Na travessia do deserto, Israel era o símbolo de uma pessoa em crescimento, no deserto, Israel aparece como pessoa adulta, capaz de escolhas cada vez mais exigentes. 

No deserto, Israel experimentou a ação amorosa e providente de Deus. No Sinai, Israel encontra-se com o próprio Deus. Deus mesmo se revela e dialoga com o povo eleito. No Sinai, Israel sentiu-se diretamente investido pela presença misteriosa de Deus; sentiu-se, ainda, interpelado por Deus, a ponto de sentir-se na obrigação de dar-lhe uma resposta. 

Por isso mesmo, o Sinai permanece o protótipo de todas as experiências místicas de Deus; paradigma do diálogo entre Deus que fala, se revela e propõe, e o homem que na fé acolhe a palavra e se dispõe a realizá-la na vida.

“Moisés pediu a Iahweh: ‘Mostra-me a tua glória’” (Ex 33, 18). Nesse pedido de Moisés está presente o desejo de todo o Antigo  Testamento de “ver Deus”, nada diferente do pedido de Filipe: “Senhor, mostra-nos o Pai e isso basta para nós” (Jo 14, 8). Assim como Filipe, que ouvira Jesus falar tantas vezes do Pai, aspirava ao seu “conhecimento direto”, da mesma forma, a espiritualidade do Antigo Testamento é toda direcionada à intimidade plena com Deus; por isso mesmo, coloca nos lábios do homem mais próximo a Deus, o pedido decisivo: a visão direta da Glória divina. 

O pedido de Moisés não pôde ser atendido, pois Deus é sempre o “transcendente” e, como tal, por natureza, invisível e inacessível ao ser humano: “Você não poderá ver o meu rosto, porque ninguém poderá vê-lo e continuar com vida” (Ex 33, 20). No entanto, a bíblia relata que Deus permitiu uma “experiência mística única” a Moisés, a mais profunda de todo o Antigo Testamento: escondido na fenda de uma rocha, Moisés pode contemplar ‘algo’ da glória divina (cf. Ex 33, 21-23). Um Deus invisível, mas próximo e penetrante. Esse é o Deus da espiritualidade veterotestamentária.

O profeta Elias, também no monte Sinai, fez uma experiência semelhante a de Moisés (cf. 1Rs 19, 11-12). Nesta passagem nos confrontamos com quatro grandes símbolos: o vento impetuoso (furacão), o terremoto, o fogo e a brisa suave. O profeta Elias passa através destes quatro símbolos, somente no último reconhece a presença de Deus. 

Na realidade, a Sagrada Escritura para indicar a presença de Deus utiliza esses quatro símbolos. A vinda do Espírito Santo sobre os apóstolos é narrada como um vendaval intenso (cf. At 2, 2). O terremoto também simboliza uma presença forte de Deus, como na ressurreição de Cristo, quando houve um grande terremoto (Cf. Mt 28, 2). Também o fogo é frequentemente caracterizado como sinal da presença de Deus: Moisés toma consciência de estar na presença de Deus ao ver e contemplar a sarça ardente. A nuvem que acompanhava os israelitas no deserto é descrita, no livro do Êxodo, como uma coluna de fogo que os precedia. O Espírito Santo desce sobre os apóstolos em forma de línguas de fogo.

Mas na experiência de Elias, no Horeb, o momento culminante do reconhecimento da presença de Deus é o ‘murmúrio de uma brisa suave’. Quatro imagens bíblicas que manifestam a presença de Deus; quatro imagens que também expressam quatro momentos da vida espiritual:

O vento impetuoso descreve o entusiasmo inicial da vocação, quando deixamos nossas famílias, nossas casas, as possibilidades de sucesso no campo profissional, para nos oferecermos a uma comunidade por toda a vida.

O terremoto é o ímpeto suscitado pelo Espírito em cada um de nós durante os primeiros anos de apostolado, quando não medimos esforços para cumprir nossas obrigações religiosas, às vezes até com certo exagero. Queremos, sozinhos, resolver todos os problemas da Igreja! (...).

O fogo é uma realidade que purifica. Com o crescimento da experiência de Deus, o terremoto exterior que nos levava a fazer muitas coisas, torna-se fogo interior. É o fogo que nos consome no desejo de alcançar a maturidade; e nesse desejo vai, gradativamente, nos purificando. 

A brisa suave significa a sabedoria do coração, a capacidade de acolher a presença de Deus nas mais simples circunstâncias da vida cotidiana. Enquanto antes eram necessários acontecimentos extraordinários, experiências espirituais sempre novas, num certo momento a maturidade espiritual percebe Deus nas realidades que não fazem barulho, naquelas realidades da nossa vida cotidiana: a nossa oração, a nossa relação com as pessoas, com nossa comunidade, com os mais simples serviços que prestamos ao próximo. Deus aí está! 

É a sabedoria do coração que permite à Virgem Maria, chegada à maturidade espiritual, escutar a voz do anjo, uma voz muito discreta, muito pacata, quer requer para ser ouvida um coração muito sensível, solícito e atento, como o coração da Virgem Maria, que respondeu ‘sim’. 

Deus nos conduz do vento impetuoso à brisa suave, para atingirmos a ‘sabedoria do coração’. Para chegarmos à capacidade de saber colher a presença divina na trama corriqueira de nossa vida cotidiana. A onipotência se revela na impotência!

Depois de purificado, e já amadurecido, Elias se torna mais humano e mais conhecedor de sua missão. Agora, sim, ele está capacitado para ajudar seu povo a servir fielmente a Deus. A verdadeira experiência de Deus é sempre eclesial, nunca se restringe ao âmbito pessoal. Do Sinai, a montanha de Deus, lugar teológico da experiência divina, Elias parte para o deserto, lugar antropológico dos conflitos humanos. “Quanto mais próximo de Deus, mais próximo também das misérias humanas”. 

Interessante: Moisés e Elias estarão presentes na transfiguração de Jesus, diante dos três discípulos, que permaneceram encantados (cf. Mc 9, 2ss). Moisés e Elias testemunharam com sua presença ao lado de Jesus, que, ali, sobre o “Monte Tabor”, revelava-se o “Mistério”, que animou e sustentou a vida e missão destes dois grandes místicos da história da salvação.

JEREMIAS

De todos os profetas, aquele que conhecemos mais detalhadamente a vida e a evolução espiritual é Jeremias, e isto por dois motivos: porque possuímos numerosas narrações biográficas sobre sua pessoa, e porque ele mesmo nos deixou por escrito aquilo que experimentou nas suas relações com Deus.

Começamos abordando a vocação de Jeremias (cf. Jr 1, 4-19), pois é
justamente a vocação a força que o sustenta nas provas e desilusões. Através de uma série de fracassos, Jeremias construiu uma experiência profunda de Deus. Sua vida não foi nada fácil; colecionou frustrações, foi acusado de traidor da pátria, foi perseguido e até encarcerado. Profetizou por mais de 20 anos, na cidade de Jerusalém; não converteu ninguém! Porém, manteve-se fiel a Deus até o fim.

Iniciemos pela mensagem fundamental de sua vocação: “O  Senhor dirigiu-me a palavra nestes termos: ‘Antes de formar-te no ventre materno, pensei em ti; antes que saísses do seio de tua mãe, consagrei-te; destinei-te como profeta para as nações’” (Jr 1, 4-5). A vocação de Jeremias está alicerçada numa palavra. Para Isaías, por sua vez, a vocação corresponde a uma grande visão: vê o Senhor sentado sobre um trono, e os serafins no templo proclamando sua santidade (cf. Is 6, 1ss). Também para Ezequiel, a origem de tudo é uma visão: a do carro da glória do Senhor que abandona Jerusalém (cf. Ez 1, 1ss). Jeremias, contudo, recebe apenas a “Palavra”, que dá a sua vocação uma característica de “interioridade”. Não um fato exterior glorioso, não uma visão de luz, mas uma Palavra interna. Neste sentido, Jeremias é muito próximo a nós. É no silêncio que Deus se revela a ele, fala ao seu coração; e, assim, Jeremias se torna o homem da palavra leve, sutil e
escutada.

Jeremias faz a experiência dos próprios limites: “Vede que não sei falar, porque sou muito jovem” (Jr 1, 6). Porém, experimenta a força de Deus na própria fraqueza: Deus coloca suas palavras em seus lábios, lhe dá olhos para ver o significado verdadeiro dos acontecimentos (cf. Jr 1, 7-16). Enfim, toma consciência que nele, frágil e tímido, algo mudou, que existe nele uma nova natureza, uma força antes desconhecida: “Eis, portanto, que eu te faço hoje como cidade fortificada e como muro de bronze (...)” (Jr 1, 18). De tímido torna-se como um muro de bronze, capaz de resistir a toda sorte de provações. 

Graças à vocação adquire qualidades que não possuía. Experimenta a vocação como um renascimento, uma “recarga vital”, uma revelação de seu verdadeiro ser. Por isso, sente a necessidade de “recordar” o evento, para prosseguir, apesar das fadigas, da amargura, das desilusões, que a missão lhe infligiu, depois de vinte e três anos. Sente a necessidade de “fazer memória” do fato que Deus o chamou – raiz da sua existência – para superar depressões e tristezas. Tem a convicção de que não foi ele próprio a se meter em dificuldades, mas foi Deus que o levou por esta estrada. 

Mas é na chamada “confissões”, que Jeremias nos revela sua profunda experiência do Mistério divino. Os estudiosos elencam quatro “confissões” em Jeremias (cf. Jr 11, 18-23; 15, 10-21; 20,7-9; 14-18). Analisaremos as duas últimas confissões.

“Vós me seduzistes, Senhor, e eu me deixei seduzir! Foste mais forte do que eu e me subjugaste! Tornei-me objeto de gozação todo dia: todos escarnecem de mim” (Jr 20, 7). Jeremias alega que foi “iludido” pelo Senhor: não queria profetizar e foi enganado pelo Senhor, que o levou a segui-lo, sem, contudo, dizer-lhe que coisa o esperava no futuro. Confiou em Deus e se meteu em situações difíceis. 

Nós também muitas vezes nos deparamos com situações difíceis, nas quais entramos por obediência a Palavra de Deus e por amor à Igreja. E muitas vezes também reclamamos: “Por que, Senhor, que coisa fiz para ser tratado assim, tão mal”? 

E, aí, muitas vezes, vem a “revolta contra Deus”: “A palavra de Deus tornou-me objeto de vergonha, em chacota todo dia. Por isso refleti: ‘Não pensarei mais nisso, não falarei mais em seu nome’” (Jr 20, 8b-9a). Jeremias diz que está arrependido de seguir o Senhor (...). O lamento de Jeremias é expresso em oração, portanto com espírito de fé. Jeremias não tem vergonha de abrir seu coração ao Senhor; ele está sofrendo, e não esconde seu sofrimento. Aliás, seu sofrimento tornou-se conteúdo de sua oração, de seu diálogo com Deus. É uma oração viva, existencial. 

Mas logo em seguida, Jeremias completa: “Mas senti no meu coração um fogo abrasador, comprimido dentro dos meus ossos; esforcei-me por contê-lo, mas não pude” (Jr 20, 9b). Apesar de todo sofrimento, a graça de Deus impulsiona-o a continuar anunciando sua Palavra. Não há como resistir. Deus está sempre ao seu lado (cf. Jr 20, 11-13). 

Finalmente, a quarta e última confissão: “Maldito o dia em que nasci, (...) porque não me fez morrer no seio materno, de sorte que minha mãe fosse o meu sepulcro (...). Por que saí do ventre materno, para ver sofrimento e aflição e consumirem-se meus dias na desonra”? (Jr 20, 14-18). É a mais dura de todas. Jeremias se fecha em si mesmo, nos seus sofrimentos. Não vê saída, a vida tornou-se para ele um verdadeiro absurdo: puro sofrimento. E Deus se cala. Não se comunica nem mais interiormente. Não há “conforto” nem mesmo “reprovação”. Simplesmente silêncio. É a experiência que místicos, como São João da Cruz, denominam: “Noite Escura da Fé”. 

Esta última confissão coloca-nos diante do mistério do sofrimento do inocente. Porém, Jeremias não é vencido nem destruído pelo sofrimento. Até o fim de sua vida continuou a proclamar a Palavra de Deus. Aliás, essa oração de Jeremias revela a luta interna que foi travada em sua alma: a luta da fé. 



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