A espiritualidade da primeira Igreja era ‘cristocêntrica’; essa é a sua primeira e fundamental característica. As palavras e os gestos de Cristo estavam presentes na mente e no coração dos primeiros cristãos. A característica distintiva das primeiras comunidades cristãs consistia em viver concretamente, o preceito fundamental de Cristo: “Nisso reconhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo 13, 35). Levando a sério o mandamento do Senhor, os primeiros cristãos chegavam ao altruísmo supremo, a ponto de vender seus bens a fim de partilhar o lucro entre os pobres (desapego dos bens). Esta exigência radical ao exercício da solidariedade colocou o ‘cristianismo’ em destaque.
Em segundo lugar, a espiritualidade cristã primitiva era ‘escatológica’: pensando num retorno próximo de Cristo, os fiéis se concentravam numa vigilante preparação para a parusia. Depois das diversas formas de ‘milenarismo’ propagadas por Papias e seus seguidores, apoiadas numa interpretação literal de Ap 20, 1-10, foram necessários dois séculos para tirar os exageros do conceito de milênio e manter o fato fundamental: a Igreja, desde a paixão e morte de Cristo, já está nos últimos dias.
Em terceiro lugar, a espiritualidade cristã primitiva era ‘ascética’. Ascese entendida como exercício das virtudes. Os primeiros cristãos dedicavam-se, sobretudo, à prática da humildade, da paciência, da perseverança, da castidade e da obediência. Todo cristão procurava levar uma vida virtuosa, à imitação de Cristo, e nos tempos de perseguição a mais alta manifestação de santidade será o martírio. Mais tarde será o celibato; e, mais tarde ainda o ascetismo se tornará uma forma de vida marcada pela austeridade. O próprio ascetismo como separação do mundo surgirá também, de alguma forma, como resultado do elemento escatológico.
A quarta característica da espiritualidade cristã dos primeiros tempos pode ser definida como ‘litúrgica’. O ponto focal da vida litúrgica era a eucaristia. A liturgia eucarística primitiva começava com leituras escriturísticas, orações e uma instrução, à qual se seguia a confissão de fé, a oração eucarística e a recepção das espécies sagradas.
A quinta característica geral da espiritualidade da primeira Igreja pode ser definida como ‘comunitária’. A vida comum era um elemento essencial, como o sabemos pelo testemunho dos Atos dos Apóstolos. A comunidade era o ambiente no qual o fiel praticava a caridade fraterna, sendo também um aspecto importante da liturgia e do culto.
Por fim, a ‘penitência’ também representou uma das mais significativas expressões de espiritualidade da Igreja primitiva. Jejuava-se as quartas e sextas-feiras, e também em preparação à Páscoa. Penitências públicas eram impostas em vista dos pecados mais graves: apostasia, homicídio e adultério.
A espiritualidade do martírio: os primeiros cristãos possuíam também um sentido muito vivo do ser humano tornado filho de Deus, em Cristo, através do batismo. O batizado está incorporado a Cristo; por isso, o cristão deve estar disposto a testemunhar Cristo no dia-a-dia, e, se necessário, até com a própria vida (desapego da própria vida).
Nos três primeiros séculos, o martírio é considerado o ápice da perfeição cristã, e, como conseqüência, o culto aos mártires expressava, enquanto tal, a piedade cristã (devoção ao túmulo e às relíquias); a ponto de se consolidar como a primeira forma de culto litúrgico aos santos. O mártir é o primeiro tipo de santo a receber culto público da Igreja. A morte não é mais uma trágica realidade, mas real possibilidade de identificar-se com Cristo crucificado e ressuscitado, vencedor da morte. Sofrer o martírio era uma honra, uma prova de amor perfeito a Cristo. O mártir cristão não é um simples herói, pois não busca a própria glória, mas o triunfo de Cristo nele. Era identificar-se totalmente com Cristo.
O martírio era um dom concedido por Deus a alguns, não a todos. A Igreja rechaçava toda manifestação irracional e fanática de querer sofrer ou de apresentar-se espontaneamente para o martírio. Não aceitava aqueles que deliberadamente provocavam a experiência do martírio. Não os canonizou.
O martírio tinha uma dimensão litúrgica e sacramental. O mártir unia seu sacrifício ao de Cristo. Antes da execução à semelhança de Cristo, o mártir vive seus últimos momentos num intenso clima de oração. O mesmo ambiente espiritual com que Cristo viveu sua paixão. É também tempo de oração de intercessão por todos. O mártir é um mediador naqueles momentos em que a caridade de Cristo o move a lembrar-se de todos, da Igreja e até dos inimigos, porque Deus o escuta atentamente como escutou Jesus suplicante na cruz. Por isso, os mártires eram considerados os mais eficazes intercessores diante de Deus, aos quais se encomendava toda a Igreja.
O mártir consagra e santifica a própria vida convertendo-a em sacrifício agradável a Deus. Este sacrifício foi reconhecido como um verdadeiro batismo, ‘batismo de sangue’, não somente em sentido simbólico, mas como verdadeiro sacramento. E, como tal, é reconhecido pela Igreja nos casos de catecúmenos martirizados antes de receberem o batismo de água. O martírio é um batismo, depois do qual não se peca mais, e que une imediatamente a Cristo. No martírio o sacramento acontece no próprio sangue, não na água, passando-se imediatamente do sinal à realidade assumida e imitada.
A espiritualidade da virgindade: a virgindade foi uma corrente espiritual que ajudou a repensar o papel da própria pessoa, do corpo, na relação com Deus e com o próximo. A motivação espiritual da virgindade é o seguimento de Cristo na integridade corporal e espiritual. A vida celibatária de Cristo e de Paulo, apóstolo, influenciaram muito esta forma de espiritualidade.
A virgindade foi uma forma de vida reconhecida e guiada pela Igreja com muita atenção, basta conferir a boa quantidade de escritos sobre o assunto, os chamados ‘Tratados sobre a Virgindade’, obras escritas quase sempre por bispos. Segundo relatos da ‘Didaché’, de ‘Santo Inácio de Antioquia’, de ‘Clemente Romano’ e do ‘Pastor de Hermas’, as virgens formavam um grupo diferenciado com um peso específico dentro da Igreja. Para os apologistas cristãos do II século, a virgindade cristã era uma prova apodítica (evidente) do alto nível moral do cristianismo, usada contra as falsas acusações de imoralidade que vinham dos pagãos. Algo inclusive reconhecido por alguns pagãos como ‘Galeno’, que escreveu a respeito: “Os cristãos observam uma conduta digna de verdadeiros filósofos. Desprezam a morte [...] entre eles há homens e mulheres que se abstêm da vida conjugal por toda a vida”.
A nível litúrgico, nos primeiros séculos não existia ritual de consagração; sobre este particular é clara a ‘Tradição Apostólica’ de Hipólito:
“Não se imporá as mãos sobre uma virgem, de vez que tão somente sua decisão já a torna virgem”.
A virgindade consagrada era para ambos os sexos, mas foi justamente na condição da mulher que a virgindade adquiriu o caráter simbólico espiritual mais denso, como matrimônio com Cristo. Era deixar o matrimônio terrestre (estrutura provisória destinada a cessar com a morte) para abraçar o matrimônio espiritual (realidade escatológica, definitiva). A virgem era esposa de Cristo. Este era inclusive o sentido distintivo do véu usado pelas virgens: assim como entre os romanos era símbolo matrimonial, na virgem também era sinal de união com Cristo, o não uso do véu era considerado pecado, adultério, passível inclusive de ser submetido à penitência eclesial. As virgens também eram exortadas a serem zelosas nas práticas litúrgicas e no exercício da caridade.
A espiritualidade oriunda da "reflexão intelectual" foi a primeira experiência de "teorização da vida espiritual". É a espiritualidade própria da escola de Alexandria, que muito influenciou a Igreja a partir do II século. Com a escola de Alexandria teve início a reflexão teológica, enquanto tal. Para esta escola a teologia tinha um sentido diferente do atual. Teologia significava um conhecimento amoroso e vital de Deus. Se tratava de um modo de viver, isto é, de um conhecimento tornado vida, que transformava a existência em contemplação do ‘Mistério Divino’. O teólogo era o cristão que existia em Deus, o homem contemplativo, de oração. Não havia distinção entre pesquisa intelectiva e experiência de vida espiritual. Conhecimento e amor de Deus se fundiam no refletir teológico. Grandes expoentes desta época foram ‘Clemente de Alexandria’ e ‘Orígenes’.
Segundo Clemente, o conhecimento de Deus está intimamente ligada à oração e não é apenas um conhecimento especulativo, teórico. O ápice do conhecimento divino é a contemplação, e seu último grau é a ‘apatheia’ (o controle completo das próprias paixões e dos próprios desejos). O conhecimento de Deus convoca o cristão ao amor do próximo, pois a caridade é própria daqueles que crescem no conhecimento de Deus. O caminho do conhecimento divino necessariamente inclui a oração, que é uma conversa com Deus, meio para se chegar à experiência mística, ao êxtase (experiência inefável do divino).
Clemente também propõe Cristo como o pedagogo das crianças espirituais que são os cristãos. Os cristãos devem fazer referência a Cristo em todas as circunstâncias de seu viver e em todos os comportamentos. O otimismo da espiritualidade de Clemente se baseia na encarnação: “Deus veio mostrar que nos ama”. Em vez de estimular o cristão à renúncia ao mundo, prefere que transformem o mundo pelo exemplo de uma vida guiada pelo amor de Deus e do próximo, e pelo testemunho de um coração livre da escravidão dos bens.
Para Orígenes a Escritura é a fonte da verdade, a maior parte de suas obras são dedicadas à exegese bíblica. Foi o pai da chamada ‘exegese espiritual’ (alegórica). Para ele a Escritura é como o corpo de Cristo que esconde sua divindade. A letra do texto bíblico é como um escudo protetor que esconde as realidades espirituais, nas quais estão contidas a verdade e autenticidade das coisas. O progresso espiritual acontece a partir do crescimento na compreensão da Escritura. Aqueles que se contentam com a letra do texto são os ‘simples’ ou ‘principiantes’, já os que contemplam o ‘Mistério’, e dele extraem a verdade, são os ‘perfeitos’. O caminho da maturidade espiritual é percorrido gradualmente e sua meta final é a união mística com Cristo; o conhecimento divino se converte em experiência mística. Aquele que chegar a esta experiência deve auxiliar outros a também chegarem a este grau. Orígenes insiste também no fato que a pessoa guiada pelo Espírito Santo sempre estará a serviço do próximo.
Clemente de Alexandria e Orígenes podem ser considerados os iniciadores da teologia espiritual.